quarta-feira, 23 de março de 2011

Entrevista ao Blog Cantoras do Rádio

Jardel Ther: Como surgiu a ideia de um disco irreverente e jovial como “Pecadinho”?

Márcia Castro: O disco não surgiu como obra pronta. Ele foi decorrente de um prêmio que conquistei em Salvador, o Prêmio Braskem Cultura e Arte. A partir disso, iniciei uma pesquisa intensa de repertório. Fui escolhendo as canções aos poucos, na medida em que ia fazendo arranjos, concebendo a ideia musical do trabalho. Quando me dei conta, o disco começou a ter um conceito, antes implícito, pois não estava muito claro no processo de escolha das musicas. Eu estava vivendo experiências intensas na minha vida pessoal, que se relacionavam com essa história do “Pecadinho”. Sinto que essas experiências influenciaram nas minhas escolhas musicais, e, por consequência, no conceito do próprio trabalho. O disco foi reflexo do que eu estava vivendo naquele momento. Cada canção ali tem uma relação direta com minha vida, de modo que eu me vejo como co-autora de todas elas quando as canto.

JT: Um dos poucos momentos lúgubres e sérios do “Pecadinho” é “Barulho”, de Roque Ferreira, que você canta na ilustre companhia de Zélia Duncan. Como surgiu o dueto com ela?

MC: O encontro com Zélia se deu através do próprio Roque. Ele foi uma das pessoas cruciais nesse meu disco, não somente por sua música, mas por nossas conversas, reflexões e devaneios sobre literatura, filosofia. Numa dessas conversas, eu falei da minha vontade de ter alguém especial dividindo o vocal da canção “Barulho” comigo. Pensamos em Zélia, por quem tenho muita admiração. E ela, por sua vez, é fascinada pelo trabalho dele. Ele disse que faria essa ponte. E fez. Ela topou. Ficamos muito felizes.

JT: Acredito que todo ouvinte, ao ouvir “Barraqueira”, lembrar-se-á de alguém conhecido. Você se inspirou em alguém para cantá-la?

MC: No momento que escolhi a canção, senti uma forte identificação com a letra. Acho que me inspirei em mim. Sou esquentada. Geralmente, costumo ser dócil e muito tranquila, mas o pavio é curto. Apronto um barraco facilmente, se me sinto ofendida, agredida. Pois então, sou barraqueira. Vejo que a mulher brasileira, no geral, tem uma natureza barraqueira. Muita gente se identifica com essa música.

JT: Eu acho “Queda” (que foi tema da novela "Ciranda de pedra") a cara de “Namoradinha de um amigo meu”, de Roberto e Erasmo. É só impressão minha ou você deveras se inspirou na obra do Rei pra cantar “Queda”?

MC: Não houve nenhuma inspiração nessa obra do Rei, ou em qualquer outra. Embora o tema tenha sido já retratado em outras músicas, a dramaturgia dessa canção é muito particular.

JT: Outra impressão que tenho é que, ao gravar “Vergonha”, você, teatralmente, procurou diferir-se de interpretações de canções de temas semelhantes, como “Com açúcar, com afeto”, “Essa mulher”, etc. Minha impressão está correta?

MC: “Vergonha” é uma canção diferente dessas. Ela é humorada, mesmo que retrate um drama. Acho que toca na face do drama que tangencia o humor. Tem também uma dose de ironia. Adoro cantar o humor e a ironia. Nessa música, transformo tudo que poderia ser dor em humor. É uma habilidade humana que admiro: reverter as dores em outros sentimentos e ações que não paralisem a vida. O personagem da canção, com toda dor e raiva, admite que continua sonhando... E segue, sem definições...

JT: Na versão de Jorge Mautner, “Rainha do Egito” é bem mais séria e soturna. No seu caso, está solta e irreverente. Por que optaste por suscitar esse outro sentido da canção?

MC: A letra sugere um personagem cheio de liberdade, mutante, mutável, solto na madrugada, aberto para a vida. Por isso, o arranjo segue uma linha mais leve e cheia de irreverência, como, por exemplo, a presença da orquestra, apoteótica, no início da música. É quase um devaneio ser essa rainha do Egito. Embarquei nesse devaneio.

JT: Como você chegou às inéditas: “Nega neguinha”, “Futebol para principiantes” e “Barulho”?

MC: “Nega Neguinha” foi um pedido que fiz ao Zeca Baleiro quando estava fazendo seleção de repertório. Ele me mandou duas canções. Escolhi essa.

“Futebol para Principiantes” chegou em minhas mãos através de uma seleção de musicas do Kleber Albuquerque que uma amiga, na época produtora do disco, me enviou.

E “Barulho” foi também um pedido que fiz a Roque Ferreira. Ele me enviou algumas canções, sendo que essa foi a que mais me tocou na época.

JT: Seu gosto por coisas menos conhecidas vem de forma espontânea ou é fruto de pesquisa?

MC: Os dois. Eu adoro ouvir música. E adoro ouvir coisas novas, desconhecidas por mim. Mas isso não é pré-requisito fundamental para que eu ouça, ou cante uma canção. É apenas uma predileção.

JT: Como foi lançado em DVD recentemente pela Somlivre, perguntarei sobre o DVD de Moares Moreira: Por que escolheste “Preta, pretinha”, “Vassourinha elétrica” e “Forró do ABC” dentre tantas canções de Moraes?

MC: Eu não escolhi essas canções. Elas me foram sugeridas pela direção do programa. Obviamente, adorei essa seleção. Todas elas fazem parte do repertório de minha vida.

JT: Eu adorei você cantando “Ai, que saudades da Amélia!” Foi uma inovação excelente pra tal clássico. Mas a pergunta é a mesma feita acima: Por que logo esta canção?

MC: Do mesmo modo, o diretor musical do trabalho, Thiago Marques, escolheu essa canção. Eu adorei. Ao mesmo tempo, me assustei. Esse é o grande clássico de Ataulfo Alves, tantas vezes cantado em versões antológicas. Foi difícil conceber um arranjo que não parecesse repetição, ou uma reinvenção vazia. Batemos muito a cabeça antes de fecharmos a idéia.

JT: Como é seu processo de escolha de repertório?

MC: Intuitivo, exaustivo, intenso. Ouço muita música, pesquiso, solicito canções. E canto o que me encanta.

JT: Padeces com a falta de liberdade nas gravadoras?

MC: Não. Até então, sou uma artista independente. Hoje, vivemos muito mais a ditadura das massas, a ditadura estética do que das gravadoras propriamente ditas.

JT: O que é, pra você, o mais árduo em ser cantora?

MC: É árduo viver de arte. É difícil lidar com a com a inconstância financeira, principalmente. Além disso, temos que lidar uma série de questões práticas antes desconhecidas. Hoje, os artistas gerenciam suas carreiras. Nesse gerenciamento, o tempo que dispomos para a arte é cada vez menor.

JT: Influências... Quais foram as suas?

MC: Quando criança, habituei-me a ouvir jazz e música popular brasileira por conta de meu pai, trompetista na época. Ele foi meu grande tutor musical. Esses dois estilos me formaram e me transformaram. No jazz, nomes como Chet Baker, Miles Davis, Nina Simone, Billie Holiday, Sarah Voughan, etc. Na MPB, Tom Jobim, Gilberto Gil, João Gilberto, Elis Regina, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Maria Bethânia, enfim, são muitos nomes... Depois, a música erudita experimental me instigou, de John Cage a Stockhousen. Na adolescência, isso tudo se misturou à efervescência da música baiana. Mais tarde, comecei a me interessar pelo rock nos anos 60 e 70. Tudo isso e muito mais me povoou, aliás, me povoa... E essas citações ainda não são suficientes para responder à pergunta.

JT: O DJ Zé Pedro disse que, a primeiro instante, sua voz era uma mistura de Marília Medalha com Gal Costa em 1969. Sobre Gal, qual a importância dela pra sua vida e obra?

MC: Gal, para mim, é uma das mais importantes referencias dentro do meu trabalho. É a voz mais incrível da musica brasileira, a performance mais sensual, a interpretação que alcançou o equilíbrio perfeito entre técnica e emoção, alem de um repertório impecável. Gal é rainha.

JT: Li no “Blog Márcia Castro” que, em 2008, você cantou em alguns shows de Mercedes Sosa. Como foi o convite?

MC: Não esperava o convite. Em Roma, com meu empresário e amigo dela, assistimos a passagem de som do show que ela faria ali no dia 09 de julho, dia do seu aniversário e da independência da Argentina. Após os ajustes técnicos, Mercedes me convidou para dividir com ela a música “Insensatez”, sem ensaiar, sem máscara. Só nós, a música e aquele sem fim de pessoas, dentre as quais muitos argentinos em comemoração dupla pela data, num teatro deslumbrante. Entrei no palco tremendo. Saí do mesmo modo, trêmula, mas extasiada. Depois disso, foram mais 10 shows pelo mundo com “La Negra”, sendo que o último aconteceu em Salvador, o que foi extremamente significativo para mim. Momentos profundos em minha vida, nos quais tive a oportunidade de compartilhar da generosidade de uma artista que viveu para o seu povo, para as pessoas, e fazia da música esses instrumentos de comunhão.

JT: Esse carinho recíproco com Tom Zé... Como é isso?

MC: Meu encontro com Tom Zé aconteceu de modo espontâneo. Escolhi a canção dele para não só estar, mas também intitular o meu primeiro disco (“Pecadinho”, que vem do “Frevo (Pecadinho)”, música dele e de Tuzé de Abreu, de 1972). Enviei o meu disco assim que ficou pronto e ele, generosamente, ligou para me parabenizar pelo trabalho. Fiquei irradiante. Pouco tempo depois, o convidei para participar do videoclipe do “Frevo”, com direção de Marcondes Dourado. Ele topou imediatamente. Alguns meses mais tarde, ele e Patrícia Palumbo (jornalista paulista que fez a seleção de cantoras para o último trabalho de Tom Zé) me convidaram para gravar a música "O Filho do Pato" no disco "Estudando a Bossa". A música, por si, nos aproximou. E assim persiste. Meus encontros com Tom Zé são em espaços onde a arte abre um diálogo comum. Gosto muito disso.

JT: Tens vontade de compor também? Por quê?

MC: Tenho. Gosto de escrever, gosto da poesia, da palavra. Mas acho que deve ser espontâneo...

JT: 2011... O que vem por aí?

MC: Disco novo, novos trabalhos, projetos, parcerias. Mas ainda não posso adiantar nada. Deixa ser claro e concreto. Concentrar para depois expandir.

JT: Eu, em nome de toda a equipe do Blog, te agradeço imensamente pela entrevista!


Fonte

2 comentários:

  1. Márcia é realmente uma cantora singular na (nova) MPB.Gostei do blog e finalmente descobri quando e como surgiu a parceria com a saudosa Mercedes Sosa.

    Parabéns Natival
    Passe no meu blog quando quiser/puder!
    Abraços

    ResponderExcluir
  2. Que gracinha! Eu amo esta entrevista!
    Aproveitem e visitem o www.cantorasdoradio.blogspot.com!

    ResponderExcluir